A Mulher Não-Toda

Há um ser que perfura o entendimento, evidencia os limites da palavra e delimita a incompletude do saber

Victoria Negri
4 min readMar 22, 2023

Há um ser que perfura o entendimento, evidencia os limites da palavra e delimita a incompletude do saber. Sim, a mulher.

A mulher aproxima-se do real porque há algo em sua experiência que constitui o Outro gênero, esse algo no qual foi apreendido pela falta, que esburaca o discurso e aponta o indivisível e o Real é isso, temido, porque não se inscreve no simbólico, ele aponta para o que escapa ou resiste à simbolização.
De alguma forma as mulheres passam pelo Édipo e pela castração e, mesmo compelidas, elas escapam desse processo, existindo algo do campo feminino que não passa pela mediação fálica no campo simbólico, isto é, o falo por si só não preenche totalmente a dimensão mulher.
Diante disso, é característico da feminilidade que a mulher sustenta a impossibilidade em inscrever-se totalmente na ordem fálica, ou seja, a mulher não é toda castrada. Podemos compreender as estruturas a partir da relação com o Outro na dialética da demanda de amor e da experiência com o desejo e a estruturação feminina traz consigo a consequente falta de um significante capaz de nomear a mulher, a partir desse posicionamento.
É por meio do significante que o gozo é corporalizado. O gozo fálico é fundamentalmente em suma o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro, porém, é algo do não-todo, visto que não existe nenhum outro gozo que seja fálico exceto que talvez não o conheça, visto que a faz não toda.
A falta do significante fálico coloca a mulher em uma situação particular porque lhe condena ao trabalho de construção a partir de um furo, um vazio. É nesse caminhar além do falo que abre-se o caminho para um outro gozo, o gozo do Outro, ou melhor, de tornar-se Outra para si mesma.
A não inscrição totalmente da mulher na norma fálica possibilita sua experiência de gozo que vai além do falo e, por isso, um gozo enigmático já que possui acesso a outro gozo. O gozo feminino se origina de um desconhecido, de um lugar onde só se acessa por meio da falta, de um vazio impossível de significar.

A mulher experimenta um gozo que não é denominado pelo gozo fálico e isso causa estranheza de quem está de fora, no mínimo incômodo ou curiosidade. Dentro da ordem fálica, a mulher até pode se espelhar no homem sendo restrita a isso e, é nesse momento, nessa divisão, para além da restrição da ordem fálica, que a mulher constitui Outra para si mesma.
Este constitui-se um gozo não-todo, suplementar ao falo e impossível de significar porque está disjunto do significante. Não é por não estar referenciado à função fálica que representa uma total exclusão do falo, no entanto encontra-se além.
Isso significa que a posição feminina se caracteriza por sua capacidade de se dirigir a um Outro inominável, identificado pelo que há de divino ou demoníaco no imaginário e, que possibilita, a satisfação da mulher com um gozo suplementar quando volta para si ao mesmo tempo que pode lançar seu olhar para o masculino a procura do falo.
É pela mulher não estar submetida completamente à lei do gozo fálico e da palavra que se abre a possibilidade de um gozo não-todo referido ao falo. Com isso, resta-se o inominável, a mulher como um real que goza de um gozo diferente, suplementar ao falo e parte dessa condição que a mulher estabelece um uma relação, por não estar inserida inteiramente no simbólico, privilegiada do real.
Há algo da mulher que é inominável, um furo fazendo com que ela vislumbre aquilo que escapa a qualquer tipo de formalidade discursiva, esburaca a língua e faz ressaltar um além da compreensão. Apenas há escritos de um gozo feminino pela sua não inscrição totalmente simbólica, porque é o ponto em que a lógica decai e o gozo feminino se faz presente, onde as palavras não alcançam.
Olhar a mulher pela via da falta fálica é um equívoco de condená-la sempre a uma face do inferior. Compreender a mulher pelo olhar do não-todo o qual refere-se ao sem limite é alcançar o fenômeno que ocorre na feminilidade. É visualizar que a mulher não se trata de um conjunto incompleto em que falta um elemento, mas que uma ordenação aberta ao infinito.

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Victoria Negri

| Psicóloga da Saúde especializada pelo SUS e Psicanalista | | Militante do PCdoB |